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Sobre a possibilidade de flutuar

por Carla Barreto

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        Aprendemos que arquitetura é um abrigo. Sombrear é uma de suas funções. Em Brasília, é comum a indagação: por que o arquiteto Oscar Niemeyer não colocou árvores na praça do Museu da República? A defender a boa caminhada, sombreada e descansada para a classe proletária, que vem da rodoviária e que vai para a Esplanada dos Ministérios, que vem da Esplanada e que vai para a rodoviária, diariamente, alguns apontam que estamos diante de um erro arquitetônico. Se imaginarmos árvores na praça do Museu, certamente, perceberíamos os significados do espaço de uma outra maneira, e que aliás, foi, nem mais e nem menos, criado pela arquitetura. Contraditório seria ainda dizer que a arquitetura é apenas arte pela arte. Tal “espécie” de arquitetura se mostra ainda mais indagatória quando nos defrontamos com o enquadramento arborizado das superquadras de Lucio Costa. O que nos diz não sobre o tal erro sendo corrigido, porque a classe proletária que lá está a aproveitar a tão almejada sombra não é a mesma que vai e volta pela praça do Museu, mas nos diz que a proposta de Oscar Niemeyer não é de quem não soube fazer, pois o exemplo está logo ali, do lado.

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        O arquiteto urbanista da cidade, Lucio Costa, assinala que o cinturão verde das superquadras, além de conformar o espaço, dar a devida privacidade e conforto ambiental, assegura a qualidade visual da paisagem urbana daquelas arquiteturas sem significação. Essa aplicação da arborização do espaço urbano não é o caso para o Museu da República e para a Biblioteca Nacional, pelo contrário, seu caráter de monumento quer aparecer, figurar, enaltecer-se, e principalmente, atribuir significado para o espaço. Assim, o que acontece é que a praça do museu faz parte de um fenômeno urbano, que já não muito moderno, mas sim, pós-moderno, de criar esculturas sobre plataformas. Alberto Giacometti, em 1930, já havia prenunciado em seu “Projet pour une place” a relação entre os corpos sobre uma plataforma. Tal conformação urbana, tão explorada por diferentes arquitetos, numa postura revisionista, exploraram o espaço urbano para resgatar o elo perdido do edifício isolado moderno, e que, no nosso caso, a plataforma do Museu, recortada por circulares espelhos d’água, é aquela que une os edifícios para formar um conjunto urbano que a sua virtude reside em explorar as tensões espaciais entre esses edifícios.

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          A intervenção Aguapé, de Isabela Couto e Gisel Carriconde, também não dá sombra. Se posiciona ao nível do chão, avizinhada pelo grande plano de grama da Esplanada dos Ministérios. De tal modo, parece que Aguapé nasceu ali, embora seu deslocamento do Lago Paranoá até o museu tenha ocorrido, se aconchega à composição urbana anunciando a possibilidade de habitar, coexistir e, principalmente, de estar em deriva, conforme os corpos humanos na plataforma de Oscar Niemeyer. Aguapé permite que as tensões dos edifícios geométrico-esculturais sobre a plataforma se mantenham intensas como Oscar Niemeyer nos prometeu. Aguapé fortalece o caráter non-aedificandi da praça, sublimando a mensagem do espaço livre e autônomo, que por isso capaz de assimilar, efemeramente, seus corpos em deriva. Assim, todos derivam. Aguapé não está sozinha, pelo contrário, faz companhia. Aguapé nos é familiar, sintoniza-se com os espelhos d’água de Burle Marx, como aquele do Palácio do Itamaraty. Só que, porém, lá, também com suas origens amazônicas, as vitórias-régias, as ninfeias, papiros e taboas, na sua condição de ornar o paisagismo, convivendo conciliatoriamente com a escultura, o Meteoro, de Bruno Giorgi, se mantém na sua condição primeira de planta, de natureza.

 

          Por outro lado, no Museu, Aguapé é a própria obra de arte, se auto esculpe, exalta sua autonomia, permite-se “evoluir” do ornamental para a alçar um novo lugar, da arte, ocupando seu lugar, compartilhando o espaço com a arquitetura de Niemeyer. Obra de arte viva que intervém na paisagem urbana para nos oferecer um outro equilíbrio, nos colocar diante do sistema natureza-humano-arquitetura, para nos apontar a possibilidade da nossa lógica sistêmica, do deslocamento humano, e que por isso, tão naturalmente, reposiciona a natureza, maneja a erva-daninha de lá para cá, transformando seus significados mais elementares. Aguapé, ao reiterar a condição de deriva que a plataforma do Museu nos impõe, criando aquele abrigo que nos falta, nos acolhendo para a possibilidade de simplesmente ir, nos lembra da possibilidade de flutuar.

 

            Aguapé, portanto, se integra ao coração da cidade naturalmente, mas também anuncia nossos riscos, nosso desequilíbrio ambiental, nossa condição humana, a injustiça social e a acima de tudo, o caos humano no ecossistema. Aguapé pela sua qualidade de erva-daninha, nos alerta, sobretudo, sobre o equilíbrio necessário para a existência do coletivo. Por isso, na sua vocação de viver em harmonia com espécies nativas, a integração arquitetônico-urbanística, exaltando ainda mais as tensões urbanas que a cidade pode nos proporcionar com suas espécies arquitetônicas, Aguapé, pela sua simples presença, aponta para novas possibilidades de habitar.

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